O mar invade os corredores e salões infinitos, estátuas imensas observam em silêncio, e o eco dos passos solitários de Piranesi preenche um mundo feito de mármore e mistério. Em poucas páginas, Susanna Clarke nos transporta para uma realidade paralela, tão bela quanto inquietante.
Quando comecei a leitura, não compreendi de imediato para onde a história caminhava ou qual era o propósito dos personagens. A narrativa se desenrola dentro de uma Casa imensurável, que mais se assemelha a um labirinto sem fim, repleto de salões grandiosos e estátuas colossais. Ali, vivem apenas duas pessoas: Piranesi e o que ele chama de “o Outro”.
As primeiras páginas têm um ritmo mais contido, em que Piranesi nos apresenta aquele mundo que nem ele mesmo compreende completamente. E, assim como a Casa, o próprio Piranesi é um enigma. Há nele uma inocência e uma doçura que lembram uma criança descobrindo o mundo ao seu redor, ainda que suas observações revelem reflexões profundas sobre a existência, o tempo e a vida. Seu olhar é sempre afetuoso — tanto para a Casa, que ele vê como um ser quase vivo, quanto para as pequenas maravilhas que encontra em seu cotidiano. Essa amorosidade se torna ainda mais evidente quando ele interage com o Outro, um homem racional, arrogante e frio, que contrasta com a ausência de ego e o espírito gentil de Piranesi.
O ar contemplativo da narrativa sofre uma virada com o surgimento de uma terceira pessoa na Casa. A presença desse novo personagem preocupa o Outro, que alerta Piranesi sobre os perigos que essa figura pode representar. Mas será mesmo que essa pessoa veio causar o mal?
A partir daí, segredos esquecidos começam a emergir e o mundo que até então era etéreo e encantador se revela sombrio e ameaçador. Ainda assim, é importante dizer que o livro não se torna assustador, trata-se de um suspense delicado, que envolve o leitor como um quebra-cabeça, cujas peças vamos montando junto com Piranesi.
Um dos aspectos que mais me encantaram no livro foi a construção desse universo que é a Casa. As descrições são tão vívidas que é possível sentir o ar frio do mármore e ouvir o som das ondas batendo nas paredes dos salões. É um mundo imersivo, hipnótico, fácil de adentrar — e difícil de esquecer.
Mas talvez o ponto mais alto da leitura sejam as metáforas, que só se revelam plenamente ao final. Conforme me aproximava das últimas páginas, intuindo para onde a narrativa caminhava, lembrei das aulas de filosofia no colégio sobre o mito da caverna de Platão.
No mito, os prisioneiros observam sombras projetadas nas paredes e acreditam que aquela é toda a realidade. Em Piranesi, há um paralelo curioso: embora ele tenha uma vastidão a explorar, ainda assim está preso, não por grades, mas pela ilusão de que aquele mundo é tudo o que existe. Descobrir o que há além da Casa é perceber que, mesmo com o infinito à disposição, é possível estar cativo.
Gravuras antigas como inspiração
O mais interessante de tudo isso é a inspiração clara da autora nas gravuras de Giovanni Battista Piranesi, arquiteto e artista italiano que viveu entre 1720 e 1778. Piranesi se destacou por suas representações dramáticas e imaginativas da arquitetura, especialmente da Roma antiga. Suas gravuras misturavam precisão arqueológica com uma visão quase mitológica do passado.
Sua série mais famosa, Vedute di Roma (Vistas de Roma), retrata as ruínas romanas com uma grandiosidade melancólica, ajudando a moldar o imaginário romântico sobre a Antiguidade.
No entanto, foi com Carceri d’Invenzione (Prisões Imaginárias) que ele criou sua obra mais enigmática: imagens de espaços labirínticos, escadas sem saída e estruturas monumentais, que evocam sensações de aprisionamento, memória e ilusão. Essas gravuras influenciaram escritores, artistas e, como vemos, também Susanna Clarke.
Dessa forma, o título Piranesi não é apenas uma homenagem, é uma chave para decifrar o universo simbólico e filosófico do romance. Um livro que, com leveza e profundidade, questiona os limites entre o real e o imaginário, a liberdade e o cativeiro. Sem dúvida, uma das leituras mais únicas, diferentes e marcantes que já tive.
Nota: ☕︎☕︎☕︎☕︎☕︎
Autor(a): Susanna Clarke
Ano: 2021
Editora: Morro Branco
Páginas: 250
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