Nascida nas plantações de Barbados, filha da escravizada Abena com o marinheiro ingles que a estuprou, Tituba aprendeu cedo o peso da violencia, da perda e da marginalização. Criada por uma mulher curandeira que dominava os magicos saberes ancestrais, Tituba cresceu completamente imersa em espiritualidade, cura e resistência.
Ainda jovem, foi arrastada para a Nova Inglaterra e escravizada, onde acabou envolvida nos julgamentos de bruxas de Salem. Em meio à brutalidade colonial, racista e misogina, Tituba é acusada de bruxaria e se vê prisioneira de uma história escrita pelos outros.
Esse foi o primeiro ponto que me chamou a atenção na leitura. Nos registros históricos oficiais dos julgamentos de Salem, consta o nome de apenas uma mulher negra entre as acusadas de bruxaria. No entanto, não se sabe ao certo quem ela era, de onde veio, o que pensava, o que sentia. Uma presença registrada, mas apagada.
É a partir desse vazio que a autora Maryse Condé escreve. Ela toma essa figura histórica sem voz e a reinventa em primeira pessoa, não para preenchê-la com certezas, mas para imaginar o que poderia ter sido. O resultado é um romance que mistura ficção, história, crítica social e realismo mágico para devolver a essa mulher silenciada algo que lhe foi negado: uma voz própria.
"Elas me riscaram do mapa dos humanos. Eu era ausência. Um invisível. Mais invisível que os invisíveis, pois eles ao menos detinham um poder que todos temiam. Tituba, Tituba não tinha mais que a realidade que aquelas mulheres queria lhe conceder." Pág. 45
E é dessa voz que a gente parte. Uma voz que fala de trauma, mas também de ternura, que não se deixa resumir ao papel da vítima ou da bruxa, porque carrega tantas camadas. Tituba é curandeira, amante, órfã, justiceira, rebelde, filha da diáspora. Ela é moldada pelas violências da escravidão, sim, mas também pelos afetos que consegue cultivar no meio de tanta desumanidade. E isso é uma das forças desse livro.
Essa escolha narrativa — dar a Tituba a primeira pessoa — não é apenas literária, é política. Quando uma mulher negra escreve a história de outra mulher negra que foi silenciada pelos arquivos da história colonial norte-americana, há um gesto de restituição. Não de verdade histórica, necessariamente, mas de imaginação como forma de justiça.
Condé mistura eventos históricos com elementos sobrenaturais (Tituba conversa com os mortos, por exemplo), passagens de humor ácido com momentos de profunda tristeza. Tituba é uma personagem que foge de todas as caixinhas: não é mártir, nem heroína, nem anti-heroína, ela é simplesmente humana. Há momentos duros, solitários, violentos. Há também relações ambíguas, desejos contraditórios, afetos atravessados pela opressão. Tituba ama, deseja, sofre. Às vezes erra. Mas permanece inteira em sua complexidade.
O que me chama atenção, e talvez te chame também, é como Eu, Tituba nos obriga a repensar o que entendemos por “bruxaria”. A figura da bruxa, nesse livro, está ligada ao saber tradicional, à cura, à resistência. E é esse saber feminino, negro, oral, comunitário, que o sistema colonial e cristão tenta apagar. Ser chamada de bruxa, nesse contexto, é mais uma ferramenta de controle do que qualquer descrição da realidade.
"A faculdade de se comunicar com os invisíveis, de manter um laço constante com os finados de cuidar, de curar, não era uma graça superior da natureza a inspirar respeito, admiração e gratidão? Por consequência, a bruxa, se desejam assim nomear aquela que possui essa graça, não deveria ser adulada e reverenciada em vez de temida?" Pág. 36
A leitura me provocou em muitos níveis. Fiquei pensando no quanto a Tituba ecoa outras personagens que carregam o peso de uma história que não escreveram. Mas também me fez pensar em como as mulheres negras, ao longo dos séculos, foram empurradas para papéis que jamais escolheram.
Ler Eu, Tituba: Bruxa Negra de Salem é escutar uma voz que nunca nos foi contada nos livros de história e que, quando resgatada, não quer apenas ser lembrada, mas compreendida em sua dor e sua força. Maryse Condé nos convida a olhar para Tituba com humanidade, sem simplificações, sem filtros moralizantes. E, ao fazer isso, amplia também nosso olhar sobre o presente.
Nota
Eu, Tituba: Bruxa de Salem
Autor(a): Maryse CondéTradução: Natalia Borges Polesso
Ano: 2019
Editora: Rosa dos Tempos
Páginas: 246
Autor(a): Maryse Condé
Ano: 2019
Editora: Rosa dos Tempos
Páginas: 246
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